Circundando Circunlóquios III

{"macroEnabled":false,"qualityMode":3,"deviceTilt":0.2141328295085092,"customExposureMode":0,"extendedExposure":false,"whiteBalanceProgram":0,"focusMode":0}

Quando, salvo erro, no já longínquo ano 2000, apresentei na Feira do Livro do Porto o I volume de Circunlóquios de Albano Martins afirmei – e evoco de memória porque num assalto a minha casa foi-me levado o computador onde guardava esse texto – afirmei, dizia, que o volume conjecturava, de forma depurada, uma visão da arte e da vida, reivindicativa de uma matriz poética.

O que na altura disse, aplica-se a Circunlóquios III, macrotexto enformado por multímodos microtextos, marca distintiva do Poeta, cujos flashes memorialísticos, gerados na circunstancialidade, em torno do artista e da arte, são inéditos ou foram publicados, dispersamente, sobretudo, e na sua larga maioria, na segunda década do século XXI.

Só aparentemente esta obra poderá ter o epíteto de prosa posto que a função poética se presentifique através da eufonia e a conotação se sobreponha assazmente à denotação, bordejando um tangível lirismo. Quero com isto dizer que o Poeta que é Albano Martins nunca se ausenta do que escreve – e isto é um elogio à sua toada metafórica e à sua escrita contida e sóbria mas fecunda em implícitos.

Entro na obra, e uma “Breve nota introdutória” põe-me de imediato de sobreaviso sobre o que me espera. O Poeta mantém o rigor e a ordem próprios dos clássicos preparando metodicamente o leitor para o que vai encontrar. É aqui, e noutras circunstâncias similares, que a figura do pedagogo felizmente se imbrica com a do Poeta.

Aluna aplicada, ou pelo menos trabalhadora que sempre tentei ser, seguirei a metodologia proposta pelo Mestre.

“Três Apontamentos” sustenta a minha afirmação de que o poeta nunca se ausenta. Dois dos textos são rematados por poemas inéditos, outro refere o fingimento. Ora o fingimento está inerente ao artista – e não só ao poeta –  pois a transformação de um acto consciente / inconsciente em arte está na sua inteira capacidade em conceptualizar uma realidade natural. A arte resulta então da intelectualização e da conceptualização do que possa ou não ter existência física. O fingimento, sobre que Albano Martins reflecte em texto inédito, mais não é que o resultado de um acto criativo e artístico transmitido de forma caleidoscópica. E ainda que cite Pessoa para sustentar a sua tese, a verdade é que conclui: “No caso do pintor ou do escultor, dir-se-á que as suas criações são simulações de si mesmos ou, por outras palavras, metamorfoses de um universo de que eles são o paradigma e o centro alveolar”. Voltarei a esta afirmação quando abordar a parte intitulada “Da poesia, da pintura, da poesia como pintura”. Ainda nesta parte, o Poeta dá duas autênticas lições sobre a arte erótica e a forma poética do Haiku. Sobre a primeira, a sua obra é por si uma autêntica lição que, irradia dos clássicos até aos nossos dias  e que  conclui afirmando

De pé

és uma taça

cheia; deitada,

vinho derramado.

Por isso vivo

embriagado.

Já quanto aos Haiku, é conhecida a vocação de Albano Martins para aquilo a que denomino uma poética minimalista, logo pactuante com esta forma oriental de expressão, ainda que o poeta a ela não se escravize, sobretudo em questões formais, ficando-se pelo estado Zen por ela inspirada:

Esta manhã, ao levantar‑se, o mar

esqueceu‑se

de se pentear.

Em “Homenagens”, soa a gratidão aos ensinamentos e à amizade de Cruzeiro Seixas e evoca com mágoa os que já faltam – sobretudo Ramos Rosa, mas também Raul de Carvalho e Leodegário de Azevedo. Deles recorda, naturalmente, o muito que deram à cultura portuguesa, mas são sobretudo as qualidades humanas que sobressaem porque só elas formatam os verdadeiros homens da Arte. Há aqui um humanismo latente que ergue uma ponte com a revista Árvore de que Albano Martins foi um dos fundadores e que demonstra que a arte só o é livremente e sem amarras.

Já em “Aproximações”, o imenso poeta Lêdo Ivo (3) e o melhor memorialista do século XXI, Eugénio Lisboa (2) são figuras tutelares. De facto, qualquer uma das obras destes autores é um verdadeiro ensaio de poesia, erudição, humanismo e verticalidade – valores que escasseiam no Portugal do século XXI. Referência similar merece Fernando Paulouro cujas obras o Poeta considera “também a reconstituição de um mundo onde, por entre os escombros, a cultura resiste e a inteligência fulgura”. Surge depois uma recensão crítica a uma obra de Vera Lúcia Oliveira e um notável ensaio intitulado “Aproximação à poesia espanhola” em que o Poeta, um pouco na senda do Iberismo de Torga, dando exemplos pertinentes, conclui que “a poesia não tem fronteiras e aquilo que a história algumas vezes separou a poesia o uniu. Se há um espírito europeu, há também, no que à Península Ibérica respeita, um espaço e uma cultura comuns. Daquele e desta nos alimentamos. Pela poesia, afinal, nos entendemos, pela poesia nos aproximamos”.

É também sob a égide dos clássicos que Albano Martins evidencia a aprendizagem através das viagens e do conhecimento in locu, nesta parte que termina com uma magistral lição sobre “Língua e Identidade” “no encerramento do VII Congresso da Comunidade Médica de Língua Portuguesa realizado, nos dias 1 e 2 de setembro de 2016, no Centro de Cultura e Congressos da Secção Regional Norte da Ordem dos Médicos, do Porto.” Magnífica lição a leigos sobre a génese da língua portuguesa e a consciência de uma lusofonia forte e autêntica nos 4 cantos do mundo. Coragem, enorme coragem para esta lição de sapiência que semeou de exemplos, por certo cativantes de uma assistência consciente, pois que a medicina é aglutinadora do humanismo e a língua é o “estandarte, o sentido de fraternidade obrigatoriamente inscrito em todas as constituições do mundo, em especial as daqueles países onde se canta, fala e escreve em português de lei.”

A ars professio de Albano Martins plasma-se em “Da Tradução”; são  dois ensaios demonstrativos de que a tradução, enquanto acto de interpretação, é determinada por contingências externas (como a visão do mundo, a ideologia e os padrões estéticos) que agem sobre o tradutor e que têm uma relação particular em cada língua.  Nesta linha de ideias, reivindica um novo papel para o tradutor que passa a ser considerado como um sujeito actuante, produtor e responsável, em vez de ser um mero instrumento, sem direito a voz e muitas vezes acusado de traição; ou seja nas traduções de Albano Martins existe o reconhecimento do caráter transformador e produtivo da tradução, bem como o papel inquestionavelmente autoral do tradutor. O texto não carrega em si sentidos, mas os sentidos do texto emergem no acto da interpretação; tanto o texto original como o texto da tradução são resultantes de um processo de transformação e, além disso, ambos apresentam uma pluralidade de vozes. Talvez por isso, quando, em 2012, fui chamada a integrar o juri constituído também por Annabela Rita e o saudosíssimo Vasco Graça Moura, para atribuição do prémio de tradução APT, as nossas vozes proferiram em uníssono o nome de Albano Martins. Disse-o na altura e reitero-o agora – só um bom poeta sabe e pode traduzir poesia. Estes breves ensaios demonstram-no.

“Três prefácios” a obras poéticas de João Rasteiro, Alfredo Pérez Alencart e Bernardette Capelo ressaltam que a antiguidade oriental e clássica são marca distintiva da produção literária de Albano Martins que as transporta, com a maior naturalidade, para a contemporaneidade. A mesma marca se mantém em “Alguns agradecimentos”, conjunto de 8 textos em que o poeta agradece condecorações, homenagens, prémios, diplomas, com que muito justamente foi agraciado, e onde o homem duro das rigorosas terras do Fundão deixa emergir um vasto manancial de afectos assim se desfasando do rol dos ingratos.

Naturalmente que um livro é um todo, mas há partes que se lêem com maior avidez. Tal me aconteceu com “Da poesia, da pintura, da poesia como pintura”. Logo o primeiro texto é explicativo de uma forma de pensamento. Quando no já longínquo ano de 1998, Albano Martins publicou A voz do Olhar escolheu para epígrafe da obra as palavras de Rafael Alberti: “La sorprendente, agónica, desvelada alegria / de buscar la Pintura y hallar la Poesía”. Ora esta obra, onde textos poéticos dialogam com textos pictótricos, é, acima de tudo, a assunção de algo que há muito se vinha prespectivando. Ainda que se possa falar de um longo e sofrido percurso rumo à plenitude artística ou de uma poesia circunstancial porque inspirada em algo pré-existente, a verdade é que as circunstâncias não são obras do acaso, outrossim de uma subjectividade fruto da formação e da inspiração de que é feita a poesia. A obra, tornada também objecto estético pela magnífica apresentação gráfica das Edições da Universidade Fernando Pessoa, tocou-me de tal maneira que sobre ela delineei umas linhas com que concorri a um prémio – Prémio Ler Poesia da Câmara Municipal de Faro inserido no Prémio Nacional de Leitura (1999). Foi o único prémio a que concorri em toda a minha vida logo, também, o único que ganhei. O mérito devo-o à qualidade de A Voz do Olhar em que Albano Martins pôs em prática o preceito horaciano ut pictura poesis que agora, em “Poesia como pintura”, teoriza. Esta teorização é depois suportada por pequenos textos – autênticos poemas em prosa – sobre a arte de Héder Carvalho, Encarnação Baptista, Júlio Resende, Avelino Rocha, José Rodrigues, Emerenciano e Luís Demée, em que o Poeta, contendo-se face à obra de arte, reduz as suas palavras a uma premeditada essência, onde tão só indicia que a literatura não posterga as outras artes, antes com elas interage na construção de uma macro-linguagem, súmula de códigos vários, na persecução de uma plenitude cósmica.

A obra segue com 4 entrevistas sobre que não me vou pronunciar por ser parte interessada numa delas. Direi tão só que, cada uma no seu género, dão uma visão quase – digo quase porque os superlativos são perigosos e instáveis – completa da poética de Albano Martins. Relevarei tão só uma resposta dada a Álvaro Cardoso Gomes sobre a função da poesia talvez porque, e tendo direito à minha subjectividade, nela me revejo e a instituo cartilha do  estudo do texto poético:

“À poesia caberá sempre, seguramente, uma função, mas não, por certo, a da sub­missão ou obediência a qualquer credo — religioso, político ou outro. Quero eu dizer que não deve ela, a poesia, ser posta ao serviço de ideologias mais ou menos dominantes nem de programas de intervenção ou transformação social, por muito bem intencionados que sejam. A poesia — a arte em geral — não vive, como se sabe, de boas ou piedosas intenções. O único compromisso a que, a meu ver, o poeta deve manter‑se fiel é o seu compromisso com o humano. E, desde logo, com a linguagem, a única “dona e mha senhor” a cujo serviço, como queria Sartre, o poeta deve estar. Por outras palavras, a poesia não é algo que possa utilizar‑se como trombeta, espingarda ou arma de arremesso.”

É isso poeta, por tal nos entendemos. Quanto à “Autobiografia” com que encerra o presente volume, quem conhece a sua poética, adivinha-a. Os poetas não têm biografia. A sua obra é garante da sua identidade.

Tenho agora o livro enquanto objecto estético na minha frente. Magnífica capa, concebida sobre um manuscrito do poeta. Tal  faz-me apetecer, de repente,  Deleuze e Guattari que se inspiram na botânica e transportam para a filosofia a noção de rizoma: contrariando a árvore de Descartes, cavam um pouco de terra, num modelo de contraposição ético-estético-político que procura linhas e não formas. O rizoma foge, eclipsa-se, confunde-se, destrói, corta caminhos, diz não às formas fechadas e às ligações definitivas. Enformam-no tão só linhas de intensidade que contrariam o plano da linearidade. Ora a escrita de Albano Martins, desenvolvendo-se em diferentes platôts, evita qualquer orientação para um ponto que a finalize ou emoldure. Microfendas estabelecem a comunicação entre esses platôts em jeito rizomático. Por elas circula a poesia, elemento aglutinador destes Circumlóquios III. “O rizoma é a produção do inconsciente” (Deleuze & Guattari) e o inconsciente chama-se poesia neste entrelugar que é o labor do poeta. A aparente prosa de Albano Martins demanda essas microfendas onde desponta a poesia qual “riacho sem início nem fim, que rói as suas duas margens e adquire velocidade no meio” (Deleuze & Guattari) e, pospondo cartesianismos, cria novos sentidos em disseminadas micro-conexões. Cadeias semióticas estabelecem redes imagéticas evocadoras de signos de outras linguagens, de outras artes que se ligam à história do procedimento criativo. Por isso sempre falei do Poeta tratando-se, aparentemente, de uma obra em prosa.

Sei que não escalpelizei a Circunlóquios III – não o podia, nem queria, nem o devia fazer. Por ele e com ele viajei. Quero que as observações que ora fiz motivem potenciais leitores à acção de novas viagens. Quero que perscrutem nas microfendas o percurso dos rizomas que são a verdadeira essência da poesia. Eles estão lá nesse entrelugar. A obra espera-vos e merece; e o Poeta também.

 

amartins

 

No Porto em 27 de Novembro de 2017

Isabel Ponce de Leão