Menu do dia

juliocesarmachado6

Sopa:
Açorda portuguesa (poema de José Inácio de Araújo)

Pão de trigo, sem ter sombra de joio;
Azeite do melhor, de Santarém;
Alho do mais pequeno e do saloio.
Ponha em lume brandinho e mexa bem,

Sal que não seja inglês – porque é remédio
Toda a criança assim alimentada
É capaz de deitar abaixo um prédio,
Quatro meses depois de desmamada.

Com este bom pitéu sem refogados,
Invenção puramente lusitana,
Os ilustres varões assinalados
Passaram inda além da Taprobana.

Fortes p’la açorda, demos nós aos mouros
Como se sabe, uma fatal derrota,
E abiscoitamos majestosos louros
Para os nobres troféus de Aljubarrota.

Transcrita do livro Volúpia, de Albino Forjaz de Sampaio. Comediógrafo, tradutor de La Fontaine e poeta, Araújo nasceu em Lisboa em 1827, ignorando-se onde morreu, sendo certo que tal aconteceu em 1907. Foi um autor popularíssimo na segunda metade do século XIX. Mas só por humor se destaca o azeite escalabitano como o melhor lusitano! Os azeites do interior nortenho e alentejanos não lhe ficam nada atrás! Mas, vão ver, que há quem volte a gabar os azeites desta região.


Prato de peixe:
Caldeirada de peixe (texto de Júlio César Machado)

Refogai – o imperativo é indispensável no estilo da receita – refogai duas cebolas em azeite do sr. Alexandre Herculano, e deitai-lhe depois alguma salsa, pimenta e sal. Quando o refogado estiver aloirando, cortai cebolas verdes em quartos, e algumas cabeças desafio ou de eirós, misturai-lhe uma porção pequena do que se chama adubo e que se encontra à venda nos armazéns do Cais do Sodré e Ribeira – colorau, caril, etc., e dá-se duas voltas a tudo isto na fritura do refogado, um pouco antes de se atirar para o tacho cinco ou seis tomates grandes, em pedaços, uma colher de vinagre, duas de azeite e algumas lulas ou ostras.

juliocesarmachado3 (Júlio César Machado)


Prato de carne:
Arroz de perdiz (texto de Fialho de Almeida)

Primeira operação. – Ferver duas perdizes bem limpas, em água, com algumas tiras de presunto e linguiça magra, fresca podendo ser, e não rançosa. A trecho de meia cozedura, tirar para um prato as perdizes, e acessórios, ficando na panela o caldo posto em sossego, como nos Lusíadas, a linda Inês.

Segunda operação. – Em caçarola lavada, pôr a refogar aparte, e a fogo brando, em três colheres de manteiga de vaca, três dentes de alho, pimenta, salsa picada, cravo-da-Índia e, loiro – o loiro em mui exígua quantidade. Quando a manteiga tiver já feito estes temperos, sem lhes consumir porém o perfume, juntar tomates bastantes (uns cinco ou seis, dos grandes, cortados em bocados, e completamente limpos da buchada interior), e duas ou três cebolinhas de Lisboa, descascadas, bem limpas, e aos bocados.

Refogar tudo, até ficar num todo uniforme, e em termos que no paladar predomine um ligeiro queimor de pimenta. Ao refogado juntareis então uma massa picada feita com os bocados de presunto e linguiça da primeira operação, e bem assim os miúdos das perdizes, ou quaisquer outras de aves e caça que se possam obter das outras olhas do jantar. Nova fervura, e incorporar aos poucos, dois decilitros de vinho tinto (velho, e até generoso, quem quiser), e todo o caldo de fervura da chamada primeira operação.

Apura-se tudo isto a fogo brando, sem deixar de ir provando sempre, até que o paladar de cozinheiro confirme e reconheça a permanência e boa altura dos aromas e mais riquezas sápidas do molho.

Por fim, junta-se no molho, arroz em quantidade, que se vai cozendo a fogo lento, mexendo constantemente, porque se não toste e pegue ao fundo da caçarola. Quando está pronto, ajuntem as perdizes, cortadas em bocados certos e bonitos, e que se farão embeber completamente dos perfumes do guisado, metendo por fim a caçarola no forno do fogão, com ramos de salsa por cima, para tostar e aloirar a crosta do arroz, que deve-se servir quente e a pouco trecho de tirado.

*
– E então é maravilhoso este petisco?
– Tão maravilhoso que uma vez antecipei com ele a Páscoa, de três dias.
– ?!
– Estava a prepará-lo na Rua da Condessa, em Sexta de Paixão, e nisto quatro argoladas na porta, de tremer. Vai a criada… era Nossa Senhora da Soledade, que saída na procissão do enterro, vira de repente erguer-se do esquife Salvador do Mundo, gritando párem! párem! – mal lhe chegaram às ventas os perfumes ressurrecionais do meu arroz.
– Ressuscitou. E a respeito de subir ao céu?
– Qual subiu ao céu! Jantou connosco. Sabe que sou médico. Pois muito à puridade lhe digo que foi este também o único sucesso clínico da minha vida de doutor.

No volume Receitas para Gastrónomos Requintados: Inventadas e Executadas por Distintos Artistas e Escritores Portugueses. org. Paulo Plantier (1994), no entanto, a receita, no dizer de Fialho, por várias vezes mereceu as honras da Imprensa, e não se admirava, admitindo por tratar-se de obra íntegra e cientificamente criada para lisonja dos mais subtis requintes gustativos. Porém, o que resta ao leitor? Umas perdizes de aviário… José Valentim Fialho de Almeida (Vila de Frades, 1857 – Cuba do Alentejo, 1911), ajudante de farmácia, licenciou-se em Medicina, mas pouco exerceu. As letras eram o seu caminho. Cronista exímio, notabilizou-se com a série de volumes de crónicas Os Gatos, e como contista: O País das Uvas, A Cidade do Vício, entre outros. Postumamente, os seus artigos políticos e de intervenção social foram coleccionados em numerosos volumes.


Sobremesa:
[Os] Doces (texto de Abel Salazar)

O Minho é lambão, e inventou três classes de doces, os doces de romaria, os doces caseiros e os doces de convento.

São ingénuos e simples, sorridentes, embrionários, gaiatos de formas e de ornatos de açúcar branco, de açúcar róseo, os doces de romaria, entre os quais impera, fofo, elástico, dourado, o famoso pão-de-ló, enorme, em forma de roda, encastoado em papel.

Bolos, biscoitos, cavacas, toda uma infindável série de modalidades culinárias que o rótulo geral de doce de romaria engloba e define, peja, álacre, as toalhas dos tabuleiros ao pó fulvo e sob a luz do fogo das tardes de arraial, tentando olhares, cativando estômagos – e do céu caiu, como por milagre, um «toucinho» célebre, em caixas redondas de madeira, a coberto de rendas róseas de papel.

E os doces caseiros, desde a marmelada famosa, vermelha ou branca, à chila translúcida de âmbar e ao carnudo calondro, desde os perfumados formigas ao garrulo arroz doce, são gulodices culinárias inesgotáveis em mãos de velhas senhoras e de velhas criadas, nos casais minhotos; só os doces de convento lhes levam vantagem, em número e qualidade, mas esses dir-se-iam inventados por fadas para exigentes lambões: não se descrevem, não se enumeram: comem-se, num êxtase, de olhos cerrados, como um néctar de deuses, legado aos homens por mãos de freiras.

No livro Recordações do Minho arcaico (1939). Este texto foi inicialmente publicado na revista O Trabalho, nº 195, a 24 de Junho de 1937.


Digestivo:
Canção do Vinho do Porto (poema de Eugénio de Castro)

Oiro líquido para os olhos,
Doirados sonhos desperto:
Jardim d’Abril para o olfacto,
Sou prà boca um céu aberto!

Do chipre o clássico vinho
E a própria ambrósia dos Numes,
Nem aos calcanhares me chegam
Na luz, na cor, nos perfumes.

Velha Roma, abranda a embófia,
Desse teu orgulho eterno;
Ao pé de mim é zurrapa
O teu cantado Falerno!

Metido nesta garrafa
Por mão sabida e prudente,
Como jóia, fui passando
Pelas mãos de muita gente.

Até que um dia, por voltas
Da sorte obscura e secreta,
Vim ter, sem saber porquê,
À garrafeira dum poeta.

Sem saber porquê, não digo,
Sei muito bem por que vim:
É poeta, sou digno dele,
Como ele é digno de mim.

vinho_do_porto2
Transcrito da antologia O Vinho dos Escritores, org. Sandra Silva e Ana Matoso (e esta referência é já uma homenagem à edição a que me refiro). Eugénio de Castro (Coimbra, 1869 . 1944) é o nosso grande poeta simbolista, autor de extensa obra poética e professor universitário na cidade do Mondego.


Textos e desenho extraídos de:
Moutinho, José Viale [2015]. Um jantar de escritores – seleção de textos e notas epicuristas. Sintra: Colares Editora, pp. 28, 53, 58-59, 84 e 101.

Fotografia “Vinho do Porto” extraída da Wikimedia